20.4.08

 

A Barafunda no PSD



Embora com relutância, também eu direi a seguir algumas palavras sobre a calamidade organizativa em que o PSD se deixou cair, há bem mais de uma década, se considerarmos que, no final do 2º Governo de maioria absoluta de Cavaco Silva, já as coisas, nesse plano, corriam francamente mal.

Quando falo da calamitosa situação deste partido, faço-o sem qualquer regozijo, sem nenhum cinismo, antes com certa mágoa, porque a ele me afeiçoei, na denominada era Cavaco, e nele votei várias vezes, desde 1985 até ao advento da ilusão barrosista.

Quando era já perceptível o fiasco de Durão Barroso, um caso notável de excesso de cotação para o real valor da personagem, ainda me dei ao trabalho de escrever alguns textos com intuitos morigeradores da situação que o PSD então vivia, que enderecei, sozinho e em conjunto com outras pessoas, a algumas gradas figuras políticas e mediáticas do partido.

Jamais houve resposta das ditas figuras. Deveriam certamente estar muito ocupadas com altíssimas dissertações académicas ou com a elaboração de vastíssimos Tratados Económico-Político-Filosóficos, todos de marcado pendor neo-liberal, por certo de elevadíssima complexidade, que totalmente os absorvia, impedindo-os de desviar a sua digníssima atenção para coisas mais singelas, mais terra-à-terra, muito fora do âmbito das suas etéreas cogitações.

Naqueles tempos, Durão Barroso, Carlos Tavares, Manuela Ferreira Leite e Bagão Félix, concentravam-se na competitividade da Economia, na diminuição do défice orçamental, com fortes rombos sofridos no final da generosidade guterrista, e davam também prioridade à revisão da legislação laboral.

Durante dois anos, até à fuga vitoriosa de Durão Barroso para Bruxelas, fomos bombardeados com aqueles três grandes desígnios nacionais.

A competitividade das Empresas traduziu-se em contenção salarial, com aumentos sempre abaixo da taxa de inflação, viciadamente calculada, com largos licenciamentos de pessoal, aqui continuando a modernização guterrista, ao mesmo tempo que se premiavam copiosamente gestores de grande intimidade pessoal com os círculos polítitco-partidários do chamado bloco-central, no que se mantinha a anterior prática guterrista, ainda que com menor sectarismo, não sei se por deliberação própria, se por ingenuidade ou se simplesmente por pura inépcia.

No combate ao défice, erguido como condição absolutamente sine qua non do nosso desenvolvimento, se não mesmo da nossa própria sobrevivência como estado soberano, chegou-se ao cúmulo de vender património à pressa, sem sequer se curar da oportunidade dos negócios, alienando ao desbarato valores e bens do Estado, que interesses especulativos rapidamente aproveitaram. No final, o resultado foi que o Estado não só não conseguiu diminuir o défice orçamental, como perdeu definitivamente património.

Na apregoada ingente reforma da legislação laboral, o Governo de Durão Barroso sustentou enorme contestação social durante dois anos inteiros, para, dizia-se, estimular a criação de emprego, só possível com a destruição da rigidez legislativa vigente : «boa para quem estava empregado, péssima para quem procurava emprego», como igualmente se inculcava.

No final, não houve criação de emprego, mas aumento das situações de precariedade contractual no mundo do trabalho, como o homem da CGT, Carvalho da Silva, denunciava, aqui com inteira oportunidade e razão. Tanto é assim que, agora, já se anuncia nova revisão das leis laborais, considerando-se insuficiente ou desadequada a anterior reforma de Bagão Félix.

Cumpre dizer que o PS, na altura, combateu imenso esta reforma da legislação laboral, para depois, na era socrática, praticar toda a sorte de expedientes legais e para-legais no tratamento de conflitos laborais, designadamente dos ocorridos dentro do Estado, com os trabalhadores da Função Pública.

Entretanto, a ilusão barrosista consumou-se, quando surgiu a Durão Barroso a hipótese de saída em alta do decepcionante ramerrão lusitano, para as cintilantes torres bruxelenses.

Com tal desfecho, proporcionou-se a felicidade a uma família nacional, e ofereceu-se a ribalta a uma suposta vedeta mediática, imbatível nos prélios eleitorais, alegava-se, que em poucos meses tratou de delapidar o pequeno crédito que retinha aos olhos dos que já o conheciam de alguns lustros.

Com as trapalhadas santanistas, pressurosamente ampliadas pela comunicação social pró-socialista, não praticante, evidentemente, deu-se de bandeja ao Presidente da República mais palavroso e inócuo do pós 25 de Abril o ensejo de ensaiar o seu grande acto de autoridade institucional, despedindo do Governo da Nação um adversário político do seu partido, que logo surgiu como força salvífica da Nação, mesmo se arregimentando uma corte de velhas e novas mediocridades, que continuaram e agravaram, no essencial, todas as medidas de gestão política e económica dos governos de Barroso e de Santana.

Para quem acompanha a vida política sem subordinação mental, tudo isto foi limpidamente registado.

Sócrates entrou a governar, exaltado por uma Comunicação Social altamente estipendiada para o efeito. Aumentou impostos, decretou congelamentos de carreiras e de salários na Função Pública, dando o mote para a actuação dos Empresários no sector privado. Intimidou com medidas pidescas quem se lhe opunha dentro do Estado, sempre contando com a maioritária coadjuvação mediática, controlando tudo o que lhe era possível, para condicionar ou limitar a acção dos seus opositores.

Finalmente, quando o embuste socrático começou a desmoronar-se, o partido que mais poderia lucrar com a perda de popularidade do Governo em funções, vê-se envolvido em permanentes lutas intestinas, de imaginadas sumidades ou barões, que, no entanto, nada têm a oferecer ao Partido e muito menos ao País, obcecados que estão em voltar a ser Ministros ou Administradores de Empresas do Estado ou com capital do Estado, na totalidade ou em parte, ou ainda em outras Empresas ou Bancos amigos do Estado, que também os há, como descobrimos recentemente com a crise do BCP, baluarte da iniciativa privada, mas entregue nas mãos do Estado para sua própria salvação.

O Governo socrático e o seu partido chamaram-lhe naturalmente um figo, maduro, suculento e ainda por cima gratuito.

O PSD, no meio destas guerrinhas de alecrim e manjerona, tornou-se uma entidade que não inspira confiança a ninguém e, por isso mesmo, está incapacitado de lucrar com a falência da governação socrática. Chega a meter dó, ouvir o que dizem certas figuras cimeiras deste Partido.

Nem parece uma instituição que anda na política há 34 anos, mas um bando, não de loucos, como o vice-rei da Madeira chamou aos Deputados da oposição, mas de desastrados políticos, que não acertam com o que devem fazer.

A festejada ausência de ideologia no Partido deu nisto : qualquer grupo serve para o orientar, desde que prometa levá-lo à vitória nas próximas eleições.

Ninguém cura de saber quem são estas personalidades que se apresentam para conduzir o partido. Têm competências nalgum saber ou nalguma técnica, para além de haverem ganho eleições regionais ou ajudado este ou aquele a alcançar postos de influência na máquina partidária ?

Que ideias defendem para melhorar o País, excluindo os estafados dogmas do combate ao défice, a competitividade da Economia e a rigidez da legislação laboral, apesar de se admitir que possa haver aqui necessidade de intervir, porém sem a fixidez obsessiva a que temos assistido e que invariavelmente se traduz num logro final, que beneficia uns – poucos – e penaliza muitos e sempre os mesmos ?

Cabe inquirir : algum dos nomes que se anunciam já expôs o seu pensamento sobre o que pretende fazer no Partido e no País, se vier a vencer eleições ?

Fora do improdutivo jargão economês, que temos nós escutado de importante a tanta sumidade auto-embevecida ?

Porquê insistir em nomes gastos, que já dispuseram de várias oportunidades de acção política, a qual se revelou ou uma completa irrelevância ou um fracasso rotundo, excepto no que respeita às suas aceleradas promoções sócio- económicas ?

Quer o PSD ser um partido do centro, do centro-direita, do centro-esquerda ou pura e simplesmente da Direita, como ouvimos uma vez o Professor Marcelo politicamente a si mesmo se definir ?

Que pretende o PSD fazer da Social-Democracia, da sua doutrina, velha, renovada ou reajustada, mas com presumível influência inspiradora na sua acção política ?

Quer o PSD assumir-se como partido liberal, conservador ou democrata-cristão, sem qualquer referência à Social-Democracia ?

Note-se que, ao aventar estas perguntas, não vejo nenhum mal se o PSD optar por qualquer destas supostas orientações doutrinárias, presumindo que no PSD ainda se dê importância a este pormenor da doutrina política, como fonte de ideias inspiradoras da intervenção de um Partido na sociedade.

Imagino eu ainda que, antes de haver intervenção política, deva existir preparação técnica, competência nalguma área do saber, que habilite os intervenientes a agir com proficiência, com capacidade para atingir objectivos, identificar problemas, avaliar perspectivas, modos de actuação, vias de solução, etc. Que para tal, seja preciso reunir pessoas com competência técnica, seriedade, probidade, honestidade na relação com os meios utilizados e nos fins perseguidos e não só com desembaraço oratório, agilidade argumentativa, que, muitas vezes, se esgota em si mesma, nada produzindo, salvo inflação de vaidades pessoais.

Devem também os putativos salvadores da pátria PSD que já se saracoteiam ponderar bem se têm vocação para a defesa do interesse público, o qual exige mais do que determinação, capacidade de decisão; exige isto e uma robustez ética que sustente todos os requisitos, técnicos e de ordem psíquica.

Parece-me elementar que ninguém deve abraçar a carreira política, se não sente vocação para servir causas de interesse público ou colectivo, se não tem sentido de missão, se não está disposto a servir, sem pedir de imediato contrapartidas.

Quem acha que se realiza na busca de riqueza, deve fazê-lo fora da Política, no mundo dos Negócios, das Empresas, criando bens e serviços, que são tarefas de justificada realização pessoal e também de grande utilidade social, se desenvolvidas no estrito cumprimento da lei e no respeito dos direitos dos outros.

Tudo isto, creio, são banalidades, mas o País está mergulhado numa confusão tal que precisa de voltar ao reconhecimento delas, da sua indispensabilidade, se almeja seriamente a objectivos superiores.

Reformulo outra trivialidade : o País precisa de instituições com credibilidade.

No sistema político existente, O PSD é um partido de carácter reformista, inter-classista, moderado, muito necessário para garantir alternativa de Governo no País, imprescindível para arredar a actual família socrática, que não é socialista, nem social-democrática, mas uma vasta rede de nomes, de apoios, de interesses, de cumplicidades, de supostas amizades, erguida e sustentada para açambarcar o Poder, onde quer que ele resida : no Estado ou fora dele.

Perceber isto, é fundamental para extirpar, de vez, o mal que corrói a Nação; não para substituir esta rede por outra de semelhante jaez.

Se, todavia, não há vontade para lutar por este objectivo essencial, não vale a pena tanto bulício, basta animar e prosseguir com os presentes folhetins.


AV_Lisboa, 20 de Abril de 2008

7.4.08

 

Para Além do Acordo Ortográfico



A discussão sobre a actual desordem escolar que tem dominado a Comunicação Social, deixou um pouco para segundo plano a questão da iminente promulgação definitiva pelo Governo Português do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Este mesmo Acordo que, afinal, já não é tão novo quanto isso, visto ter sido concluído em 1990, aprovado no Parlamento em 1991 e, pelo seu artigo artº 3º, deveria mesmo ter entrado em vigor a 1 de Janeiro de 1994.

Contudo, por falta de cumprimento de certas diligências formais, acabou por não entrar em vigor na data prevista, caindo, depois, num certo esquecimento, para regressar agora, com algum alarido, ameaçando finalmente tornar-se letra de lei.

Grande parte das despesas culturais do novo debate tem pertencido ao nosso distinto Deputado Europeu Vasco Graça Moura, autor muito reputado, como sabemos, pela variedade, extensão e alta valia da sua produção literária, seja na Poesia, como autor e como tradutor de clássicos, actividade em que conta com vários prestigiosos prémios, nacionais e internacionais, que atestam a sua incontestável categoria intelectual, seja no romance, ou no ensaio, para já não mencionar a sua permanente intervenção cívica nos meios de Comunicação Social.

Aqui lhe reitero, por isso, a minha natural admiração, por tantos méritos reunidos, de que nos tem dado abundantes frutos, para nossa pessoal fruição.

No plano cívico, tampouco esqueço o apoio que prestou à causa da condecoração condigna de José Pedro Machado, objectivo em que tive o grato prazer de me empenhar, com algumas – poucas – pessoas, mas que, para nossa espiritual compensação, acabou por ser totalmente coroado de êxito, no ano passado, no dia 10 de Junho, dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas espalhadas pelo Mundo.

Todavia, não deixo de reconhecer a sua, por vezes, excessiva colagem a certas posições políticas do PSD, defendendo pessoas e opiniões completamente irrelevantes, num esforço generoso, mas inglório, desbaratando talento em argumentações engenhosas, porém, grandemente infundadas no campo político e, de resto, absolutamente improfícuas, que apenas lhe têm granjeado difusa animosidade, fora da área política do PSD.

Leio sempre as suas crónicas no Diário de Notícias, com particular atenção as que dedica ao Acordo Ortográfico e prezo bastante a sua opinião, mesmo quando dela discordo, sobretudo no âmbito político.

Quando, aqui há sete anos, se publicou o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, sob a chancela da Academia das Ciências de Lisboa e a coordenação do Prof. Malaca Casteleiro, foi também Vasco Graça Moura quem, com maior fundamento, acutilância e sentido de oportunidade, lhe apontou as insuficiências, as omissões, as incoerências e os múltiplos desacertos de que enfermava.

Tais desacertos eram patentes, quer no acolhimento de plebeísmos grosseiros e de neologismos ainda sem aceitação generalizada, quer no aportuguesamento discutível de certos termos ingleses, quando não optou pela sua inclusão na forma inglesa pura, como se fora um Dicionário de Inglês-Português e não um dicionário, até com pretensão normativa, do Português Contemporâneo.

No entanto, considero que VGM, nesta renovada polémica, exagera na importância que atribui à questão da Ortografia do Idioma, que começa por assentar numa convenção, embora não se trate aqui de uma qualquer convenção, mas da que se sustenta no conhecimento dos factos linguísticos característicos do Português escrito e falado, tal como ele foi sendo formado ao longo da nossa História, aqui e nos continentes em que ele logrou deitar raízes.

Por isso mesmo, convém que aqueles que integram as comissões que propõem e revêem Reformas e Acordos Ortográficos sejam profundos conhecedores dos fenómenos da Língua, dos múltiplos factores que a influenciam, na sua evolução diacrónica, mas também da sua génese cultural, no nosso caso, de toda a cultura greco-romana, nomeadamente, das suas línguas veiculares, o Grego e o Latim.

Complementarmente, para o estudo aprofundado do Português, é importante o conhecimento da língua e da cultura árabo-muçulmana, bem como, naturalmente, o das línguas novilatinas, que mais recentemente nele influíram : o italiano, no Renascimento, nos séculos XV e XVI, o castelhano, em especial nos séculos XVI e XVII, em que chegou a gozar do privilégio de segunda língua em Portugal, o francês, este sobretudo no século XVIII, o século das Luzes, por excelência, que culmina na grande exaltação da Revolução Francesa de 1789 e no XIX, o do enorme prestígio mundial da Literatura Francesa, cuja influência vai prolongar-se, entre nós, até aos anos 60 do século XX.

A partir da década de 60 do século passado, a influência do Inglês, no mundo e, em especial, em Portugal tornou-se crescentemente dominante. Com o advento, nos anos 80, das teorias Económicas e de Gestão, de pendor ultra-liberal, gerou-se, entre nós, uma espécie de obsessão adoptiva de expressões e de vocábulos ingleses, de que tem resultado grave deformação do idioma nacional.

Em algumas áreas, em particular nas da Economia, Gestão, Novas Tecnologias, nas Técnicas de Publicidade, Marquetingue e de Comunicação, o português usado aproxima-se já de qualquer coisa parecida com um crioulo anglo-português, situação a todos os títulos reprovável e totalmente inaceitável, num País que dispõe de meios, métodos e de património linguístico-cultural mais do que suficientes para evitar semelhante descaracterização linguística.

Naturalmente que se torna necessário adoptar alguns termos associados a novos conceitos e a inovações científicas e tecnológicas, mas esta adopção deve ser feita com regras, com cautelas, podendo até temporariamente perfilhar-se os termos originais, até que na nossa Língua se encontre a forma adequada de os traduzir.

Quando tal se revele de execução muito difícil, se não mesmo impossível, resta-nos sempre a solução do aportuguesamento dos vocábulos ingleses, conformando-os com as regras próprias da formação vocabular do Português, com total respeito da índole do idioma.

Estas simples observações, desde sempre recomendadas pelos maiores estudiosos da Língua, já em diferentes fóruns as tenho repetidamente recordado. São elas de compreensão imediata, porque provêm do repositório comum de bom senso existente de forma equilibrada em praticamente todas as pessoas, como o arguto Descartes, há quase 400 anos, afirmou no seu celebérrimo «Discurso do Método».

Nas anteriores comissões técnicas portuguesas que estabeleceram Reformas e Acordos Ortográficos, esses requisitos de múltiplos saberes filológicos, clássicos e modernos, eram amplamente existentes e como tal reconhecidos.

Na primeira reforma ortográfica oficial do Português moderno, em 1911, participaram nomes cimeiros da Filologia nacional, como Aniceto Gonçalves Viana, Adolfo Coelho, José Leite de Vasconcelos, Cândido de Figueiredo e José Joaquim Nunes, todos com larga obra realizada no estudo do Idioma.

Igualmente, na comissão que elaborou o último Acordo, ainda em vigor, o de 1945, pontificava Francisco Rebelo Gonçalves, Professor ilustre da Universidade de Coimbra, senhor de vastíssima cultura humanística clássica, trunfo capital no domínio dos estudos da Língua Portuguesa.

Na tentativa de estabelecimento de novo Acordo, em 1986, e no Acordo de 1990 coube ao Prof. Malaca Casteleiro a chefia da comissão científica portuguesa. Estimo que este nosso especialista nas questões linguísticas tenha conhecimento equiparável ao dos seus antecessores, sendo certo que goza de tal reputação.

Mas, pelos frutos se conhecem as árvores, e eles, nesta específica matéria, não têm sido nada convincentes. Desde logo, pelas inovações ortográficas que se quiseram inculcar com o Acordo de 1986, muito mais radical, reconheça-se, que o de 1990, que resulta da reformulação daquele, na sequência das críticas levantadas, em Portugal e também no Brasil.

Relembre-se que esse Acordo frustrado de 1986, que tanta celeuma gerou, sobretudo em Portugal, na sua presunção simplificadora, preconizava a quase completa abolição dos sinais diacríticos, originando enorme confusão, em particular, nas palavras paroxítonas (graves) e proparoxítonas (esdrúxulas), bem como propunha regras muito criticáveis acerca da hifenização das palavras.

O Acordo de 1990, que agora nos apresentam, surge-nos, nesses aspectos, bastante mais benigno, para a nossa solicitada aceitação, embora nele seja insofismável a sua geral cedência à grafia brasileira, de que nos aproximará bastante, num esforço de unidade ortográfica claramente desigual.

Custa-nos, sem dúvida, a inovação da queda das chamadas consoantes mudas, c e p, que, para os portugueses, mantinham na Língua a evocação da pronunciação aberta das vogais anteriores, em vocábulos como acção, acto, acepção, baptismo, concepção, correcto, dilecto, direcção, optimismo, optimizar, perspectiva, projecto, prospecto, etc.

No Brasil, que já delas prescindiu, tal supressão não trará perturbação nenhuma, tanto mais que lá praticamente todas as vogais são pronunciadas como abertas.

Em Portugal e nos novos Estados Africanos de expressão oficial portuguesa não é assim, verificando-se, antes, certa tendência para o fechamento das vogais presentes nas sílabas átonas.

Daí o natural receio sentido por muita gente de que tal alteração venha a acentuar uma tendência que, inequivocamente, contribui para a percepção cada vez mais difícil, do português falado, sobretudo do português europeu.

Este sintoma, aliado ao ensino deficientíssimo da Língua, nos níveis Primário e Secundário de Escolaridade, pode, a prazo, causar-nos imenso mal, deixando-nos, cada vez mais, a falar sozinhos uns com os outros, aqui, neste pequeno rectângulo da costa ocidental da Europa, «a ocidental praia lusitana», «onde a terra se acaba e o mar começa», nas expressões lapidares do nosso Poeta maior, Luís Vaz de Camões, no livro que nos perpetuou, como Nação, na História do Mundo, «Os Lusíadas».

Veja-se, a tal propósito, a dificuldade que sentimos em perceber certos diálogos nos nossos próprios filmes, facto resultante da nossa forma embrulhada, muito rápida, mas trapalhona de falar, comendo, destruindo, sílabas e vogais ou tornando-as quase inaudíveis, imperceptíveis, justamente porque não tem havido cuidado em treinar a dicção dos actores para que esta respeite a constituição completa das palavras, de modo a que todos os ouvintes falantes da língua as entendam com perfeita distinção.

Se isto é sentido por nós, que convivemos há longos anos com o fenómeno, que estamos bem familiarizados com a pronúncia portuguesa, imagine-se o que sofrerá um falante estrangeiro da Língua ao tomar contacto com o nosso modo de falar.

Todavia, este é um aspecto que pode ser muito melhorado, não estando directamente dependente do Acordo Ortográfico em vigor, assim confiássemos no papel da Escola, da Rádio e sobretudo no da TV, em propagar bons modelos de dicção da Língua.

Neste ponto, em particular, quando a Escola falha, tudo depois dela falha também, salvo se algumas instituições se derem, posteriormente, ao trabalho de preencher as lacunas de formação trazidas da Escola pelos jovens.

As reformas ortográficas que privilegiaram a fonética da Língua, em detrimento da escrita de base etimológica, sob o forte pretexto de que assim ficaria facilitada a alfabetização do Povo, na verdade, introduziram neste tema uma questão delicada, altamente discutível, que não tem cessado de nos incomodar, causando-nos inúmeros problemas de coerência normativa no Ensino da Língua.

De notar que, na altura da primeira reforma ortográfica de Aniceto Gonçalves Viana, em 1911, Portugal teria cerca de 70% de analfabetos, facto que terá justificado séria preocupação da parte das pessoas responsáveis pelos assuntos culturais do País, levando-os a optar pela forma gráfica do idioma que consideravam de mais fácil apreensão, por parte de populações de baixo índice cultural.

Contudo, cabe ponderar se, como muitos levianamente pretendem, a Língua se deve escrever como se fala. Se tal pretensão vencesse, como poderíamos conciliar tantas diferenças de pronúncia numa simples unidade geográfica do tamanho de Portugal, com os seus cerca de 90 000 km2 ?

Há lá coisa mais diversa do que o sotaque de um minhoto, comparado com o de um transmontano, de um beirão, de um alentejano ou algarvio, madeirense ou açoriano ? Imagine-se se, sob aquele pretexto, se quisesse instituir uma ortografia mais consentânea, mais próxima, do modo de falar das gentes destas várias regiões de Portugal ? Que barafunda sairia daqui?

Depois, há que reconhecer que, nos países em que se manteve uma forma de escrever de maior proximidade etimológica, casos da França, Inglaterra e Alemanha, por exemplo, foi exactamente aí que mais rapidamente se atingiu a alfabetização completa das populações, demonstrando que, para este objectivo, não é essencial a existência de uma ortografia de base fonética predominante.

De resto, em rigor, todas as línguas conservam, na sua forma gráfica, características mistas, de base etimológica e fonética, preponderando, numas mais que noutras, uma dessas orientações, na sua versão ortográfica comummente adoptada pelos seus utilizadores.

Parece assente que, para a preservação de uma certa memória linguístico-cultural, a grafia de base etimológica é mais adequada e porventura até mais aprazível ao nosso espírito, que nela reconhece fortes especificidades de natureza cultural, daí que nos doa a eliminação das consoantes mudas. Porém, se atentarmos nas grafias passadas do Português, muita coisa, entretanto, mudou, desde o desaparecimento do grupo consonântico sc de sciência, ao das consoantes dobradas, ao do grupo ph, da philosophia e da pharmácia, por exemplo, e, todavia, hoje, já ninguém reclama a sua reintrodução na grafia actual do Idioma.

A nossa memória, no entanto, congratula-se com a forma ortográfica primeiramente aprendida e a ela nos afeiçoamos pela vida fora; com o tempo, inevitavelmente, as velhas ortografias são obliteradas pelas gerações que as desconheceram na sua aprendizagem da Língua.

Por outro lado ainda, a questão de quem cede num Acordo é sempre problemática. Convém a este propósito lembrar que este Acordo de 1990 só se tornou necessário, porque o Brasil não aplicou o de 1945, apesar de o ter assinado e inicialmente homologado, para depois o revogar, na sequência desta mesma acusação de cedência da sua comissão técnica para com as teses defendidas pelos especialistas portugueses.

Esta guerra das ortografias do Português não parece, na verdade, nada fácil de sanar. Nela intervêm velhos espectros das relações históricas entre Brasil e Portugal, alimentadas do persistente contencioso colonizador-colonizado, guerra sempre agravada por questiúnculas sem fim suscitadas entre os especialistas do Idioma dos dois lados do Atlântico.

Para a coesão da Língua Portuguesa, o Acordo pouco ou nada vem contribuir. A divergência em curso entre o português brasileiro e o português europeu não pára de se alargar, quer na sua forma escrita quer, especialmente, na sua forma falada. No Brasil, há muito que se faz gala nessa distanciação, acentuando e, por vezes artificialmente reforçando, pontuais ou episódicas diferenças linguísticas.

Desde José de Alencar, por sinal, um escritor brasileiro que pode ainda considerar-se muito próximo do padrão clássico da Língua, apesar de ter escrito as suas obras com clara intenção distintiva e do seu gosto extremado, mas bem explorado, reconheça-se, dos temas índios, exotismo muito apreciado por certas correntes intelectuais do Brasil do seu tempo, até ao chamado Movimento Modernista brasileiro, do início do século XX, que essa vontade de diferenciação idiomática, em relação ao português de Portugal, tem vindo progressivamente a afirmar-se e a consolidar-se, sendo hoje uma realidade iniludível.

Nos tempos mais recentes, pode dizer-se que esse antigo desiderato brasileiro estará já realizado ou em vias de o estar, com a agravante, para a sua divergência da norma portuguesa, de o Brasil ter deixado cair o respeito da Gramática, no Ensino do Idioma, a um nível altamente preocupante, de que resulta aquele linguajar algo pitoresco, mas cheio de incorrecções sintácticas que ouvimos nas suas telenovelas que passam na TV portuguesa.

Cumpre reconhecer que, mesmo num registo de língua de tom coloquial, frases do tipo «Você já falou com o teu pai ? Olha, então vai lhe chamar; se não esquece; depois eu te ligo. Vira essa boca para lá, não me venha com mais conversa, etc., etc.», hoje comuns no Brasil, corrompem o idioma Português, seja qual for a sua norma-padrão invocada, como sempre as boas gramáticas brasileiras consideraram.

Tais modos de falar, ainda que de prática generalizada, hoje, no Brasil, são absolutamente incorrectos em Português, como em qualquer outra língua de origem latina.

Se, porventura, pretendêssemos verter estas frases brasileiras exemplificadas para francês, ou castelhano ou italiano, mantendo a mistura algo parodiada de concordâncias que nelas se observa, produziríamos uma mistela linguística que ninguém aceitaria em meios regularmente alfabetizados.

Como defenderam e defendem muitos conceituados filólogos, portugueses e brasileiros, a sintaxe, mais do que toda a variante vocabular, é que mantém a coesão do Idioma.

Pode presumir-se que a tendência actualmente divergente no seio do universo falante da Língua Portuguesa, sobretudo no Brasil, não só em relação à norma europeia, mas em relação à sua própria, consagrada em gramáticas normativas de boa reputação, como, por exemplo, a do nosso contemporâneo Evanildo Bechara, se não houver uma acção correctiva concertada, se não se agir com oportunidade, bom senso e maior rigor no Ensino da Língua, nos vários Países em que ela se fala, se irá acentuar no futuro, talvez de forma irreversível, muito mais cedo que o desejável.

Se quisermos, no entanto, em Portugal e no Brasil, abreviar um processo natural de diferenciação linguística, que pode levar muitos séculos a operar-se, não precisaremos de fazer mais nada, além de Acordos Ortográficos. Com eles ou sem eles, o processo de divergência linguística continuará e até se acelerará, na falta de rigor no Ensino e na prática da Língua.

Sem verdadeiro intercâmbio cultural, sem conhecimento mútuo das realidades culturais, sem respeito pelo património histórico e linguístico comuns, sem contacto com os escritores clássicos do idioma, etc., não construiremos nenhuma Comunidade Linguística, nem Cultural, nem sequer de natureza económico-comercial, nem de coisa nenhuma.

Este Acordo, no presente descaso linguístico-cultural em que vivemos, principalmente portugueses e brasileiros, pouco ou nada adiantará na prossecução de tais objectivos, admitindo que eles sejam mesmo comummente sentidos e desejados.

Tenciono, com brevidade, voltar ao tema, porque sobre ele muito há, na verdade, para dizer, com respeito pelas opiniões diversas, mas também sem receio de ferir susceptibilidades alheias, nem de desagradar a certas autoridades linguísticas, portuguesas ou brasileiras, reais ou imaginadas, de quem se espera esclarecimento, boa doutrina e prática coerente, em lugar de exibição de arrogada jurisdição científica ou administrativa.

A Língua, relembre-se sempre, não é matéria exclusiva de especialistas, mas tema eminente de afirmação da cidadania, que a todos convoca a reflectir e a todos directamente respeita. Dela todos somos devedores, porque nela primeiramente se forjou a nossa formação cultural. E, analogamente, todos dela nos tornamos legítimos artífices e, desejavelmente, seus obrigados defensores.

AV_Lisboa, 06 de Abril de 2008

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